AIアート: Um rangido, só um, duro e sem rima, saiu por entre as rugas daquele cômodo. Tossir um tchau foi o jeito que o depósito velho encontrou para se despedir. Proibiram-me de o visitar enquanto ele se transformava em mais um quarto. O quarto novo. A sua reforma acabaria num estalar de dedos, foi o que me prometeram, mas um caracol preguiçoso construiria um segundo andar para o seu casco mais rápido. Enquanto isso, eu me perdia num labirinto de curiosidade, imaginando quem moraria lá. Talvez um rei de terras distantes, onde se caminha dançando e se conversa cantando? Ou um astronauta que engatinhou pelo espaço e pisou descalço na lua? Ou, quem sabe, um inventor que criou a roda-gigante e a melancia sem sementes? Não sei. Mas, sem dúvidas, seria alguém dessa importância, por causa de todo o trabalho que deu: demolir uma cidade de caixotes empilhados; assoprar um deserto de poeira movediça; derrotar um exército de aranhas trapezistas... Uma novela sem fim. Missão cumprida e nem a Vossa Gostosura mais exigente teria com o que implicar. O quarto novo fazia jus ao seu nome. Uma caverna jurássica lavada com água da fonte da juventude. O teto foi pintado de preto vivo e temperado com quilos e mais quilos de adesivos estrelados, daqueles que acendem no escuro, formando a constelação de bola menor. Ficou do jeito que o céu gosta Não trocaram o estilo de pão amanteigado das paredes, deixando aquela sensação familiar aos olhos. Nelas foram pendurados quadros de molduras brancas, arredondadas e indecisas. Lembravam nuvens brincando de mímica. Eu sequer conseguia descrever os seus formatos sem mudar de ideia logo em seguida. O mais esquisito, contudo, eram os quadros estarem sem nenhuma imagem dentro. Faziam o quarto novo parecer uma galeria fotográfica duma família invisível. Centralizada na parede oposta à da porta, descobriu-se, durante a reforma, uma solitária janela, nunca antes usada! Abri-la pela primeira vez provocou um barulho tão enferrujado quanto o de uma estátua se espreguiçando. Foi música para os meus ouvidos, pois me fez sentir uma pirata abrindo uma arca do tesouro perdida. A janela, grata, deu à luz a luz. cobrindo tudo com um caloroso ouro verão. Poderiam cachear os fios das luminárias, passar esmalte nos rodapés e até batom nas tomadas, que, mesmo com toda essa maquiagem nova, indo lá no centro do cômodo e respirando fundo, ainda daria para sentir o mesmo perfume. Um delicado e irresistível cheiro de domingo, dia no qual se entrava no depósito velho para pegar a bicicleta de ir tomar sorvete. O piso de cimento queimado ainda tinha as cicatrizes que, antes, mapeavam o que preenchia o lugar. De norte a sul, o depósito velho vivia lo- tado, já o quarto novo morreria vazio, se não fosse pela cadeira quebrada e eu: a elegante como um elefante e insignificante que nem diamante... bola. Sim. Bola. E falante! Mas também muda É que falar me fazia perder o ar. O que ninguém sabia é que eu era uma tagarela: respondia tudo o que eu queria e mais um bocado, mas apenas nos meus pensamentos. Melhor assim. Porque depois que eu soltasse a primeira palavra, mesmo que a da poesia menos doce ou a do dicionário mais salgado, só iria parar de falar quando eu terminasse murcha. A propósito, a minha palavra predileta era gol. Mas aquele gol berrado com a boca bem escancarada, que nem bocejo de cobra. Era incrível ouvir uma palavra tão pequenina se esticando até o infinito. Acho que por isso eu torcia para todos os times. Adorava os dias de jogo, pois me levavam para passear. Menos quando chovia Viviam dizendo: "a bola precisa dum banho" mas era só a natureza ligar a torneira que já me guardavam na casa. Eu me mordia de raiva. Inflava as bochechas, fazia bico e prendia o ar até mudar de cor. Confesso, às vezes eu era meio estourada. Não que eu estivesse cheia de razão, mas o que de mal poderia acontecer se eu ficasse só um pouquinho molhada? Eu não era de ferro, tampouco de cristal! Então, numa noite em que um raio visitou a terra e levou emprestado as luzes das casas, a lâmpada de ideias acendeu. Eu aproveitaria a escuridão para fugir, mas iria num pé e voltaria no outro, antes que circulasse no jornal a minha foto de desaparecida. Caso o plano desse cambalhotas, eu já tinha no bolso uma desculpa genial: saí só para testar se a água da chuva estava molhada. Sem demora, pedi ajuda ao meu melhor amigo. Ele era uma cadeira alta e bamba. Em cima dele me senti montando uma girafa medrosa Alcancei a janela e, com um pulo, ganhei a liberdade! A chuva havia regado as bacias so quintal até crescerem oceanos. Boiei até criar escamas. No dia seguinte, bastou eu ameaçar um espirro, para convencer todos a me levarem pa passear, só que, dessa vez, no hospital. Ninguém queria me perder. Tudo girava ao meu redor naquela casa. Eu era a irradiante, a brilhante, a iluminante, inclusive a redundante, bola do céu. Davam-me uma vida de princesa, cercando- me com os mais chiques mimos: colar de gudes; brincos de ioiô; buquê de cata-ventos; castelo de dominó... Eu só não usava uma coroa na cabeça, porque preferia um bambolê na cintura. Mas era do meu querido trono, aquela cadeira ao meu lado no quarto novo, que eu sentia mais ciúmes. Pelé era o seu nome. Eu quem escolhi. Não por causa das pernas de pau, e sim porque ele tinha cara de pelé. Ponto-final. Era uma cadeira magra e de madeira crua. Por isso estava fora do cardápio dos cupins, esnobes. Porém esse era só o disfarce do pelé. Porque, por dentro, ele era um super-herói. Mesmo sem capa. Nascido da mesma árvore mágica com a qual se fabricam as varinhas de condão, ele tinha um superpoder: o de desaparecer! Não é lero-lero de gibi. Se eu o colocasse num lugar e fechasse os meus olhos, eu já não o via mais. Foi por isso que lacei a perna dele com barbante. Preso pela coleira de crochê, o pelé não me escapava. Essa cadeira era o bicho de estimação perfeito para mim. Por ela ser careca, não soltava pelos para a minha alergia merendar. Ensinei vários truques ao pelé. Porém era na arte de se fingir de morto que ninguém o vencia. Ele ficava lá, quieto, o dia inteiro, como se fosse um móvel da casa, pregando peça em todo mundo. Para a minha sorte, a cadeira tinha um ponto fraco: embaixo do braço, bem ali no sovaco de madeira. Bastava fazer um pingo de cócegas, para ela parar de teatrinho e cair na gargalhada Eu também levava o pelé para passear. Só que, às vezes, ele empacava e arranhava o chão inteiro. Mas quando aprendi, assistindo à televisão, sobre cavalos e ferraduras, descobri o que faltava. Com meias xadrez bem grossas, a cadeira escorregava sem freios. Era como se o piso da casa estivesse ladrilhado com cascas de banana Filho duma gangorra com um trampolim, o pelé era uma cadeira muito elétrica. Vivia andando pela casa, dum lado para o outro, com as suas quatro pernas. Até o dia em que sofreu um acidente e lhe sobraram apenas três. Acho que tropeçou brincando de amarelinha na escada. Ele nunca me contou como aconteceu. Não era cofre, mas sabia guardar segredo. Notada a tristeza da cadeira, deram-lhe sapatos, acho que colhidos no jardim: uma chuteira do campeão em verde-limão, uma bota de chuva em roxo-uva e um tamanco da moda em rosa-cereja. Três. Um para cada perna. Calçaram a cadeira para que ela não caísse. Ao menos foi o que disseram. Contudo, se a conhecessem tão bem quanto eu, teriam lhe dado patins. Faltando-lhe um pedaço, a cadeira perma- neceu lá, em pé, num cantinho do quarto novo. Ninguém mais sentava nela. Mas eu bolei um plano. Tempos atrás, encorajei o bule importado a usar a sua asa, assim ele poderia voar de volta à Inglaterra. O desastrado errou a janela e deu um beijo de cinema na parede, partindo o bico. Contei para o céu e logo depois o bule estava curado, piando em inglês na cozinha. Quem sabe, se eu pedisse com carinho, ele ajudasse a cadeira dessa vez. Só que o céu estava tão distante... Na casa também morava a dona. Assim como todo adulto, ela colecionava remédios. Talvez, misturando a sua pomada para ferida, que ardia igual a purê de pimenta, com o meu chiclete de hortelã, que refrescava que nem suco de gelo, a perna do pelé grudasse de volta no lugar. A dona falava a língua das cores: era uma pintora. Ou melhor, era uma pintura viva. Tinha franjas de arco-íris, sardas de confete e pegadas de carimbo. Uma artista da cabeça aos pés. A gara- gem da casa, onde trabalhava, era a sua oficina de sonhos: pintava aquário fardado de bombeiro; perucas secando em varal; ninho dentro de garrafa... Colocadas lado a lado, as telas pareciam cenas picotadas dum mesmo filme. Eu ficava enfeitiçada, parada feito boneca em vitrine, ten- tando adivinhar esse quebra-cabeça. Porém era pegando no sono que eu ganhava o bilhete para o cinema e chegava a um final feliz. Não acordava nem quando a dona pincelava em mim, com os seus dedos de pelúcia, uma tatuagem em aquarela. Admito, às vezes eu só fingia dormir, torcendo para ser premiada com um bigode de gato ou uns óculos de flor. Ela pintava o sete comigo. Era uma pena, aliás, era uma peteca inteira que esse tempo tenha chegado ao fim. Ultimamente a dona estava sempre cansada, com o andar arrastado de quem embaraçou um cadarço no outro, quase parando, como um robô com pilhas velhas. Ela pegou uma doença de nome esquisito, gravidez, eu acho. Isso me deixava um chocalho de medo. Porque, pelo tamanho da barriga dela, estava óbvio que aquilo era indigestão por ter devorado uma bola inocente como eu. Brincadeirinha! A minha dona comia apenas folha e era bondosa de carteirinha. Nós nos divertíamos tanto, que o relógio, invejoso, girava o seu ponteiro mais rápido, igual a helicóptero, para fazer o tempo voar. Inventamos até um esporte só nosso, chamado bolalta. Jogava-se assim: a dona me abraçava e me lançava para o céu, que, sem demora, dava-me um cafuné e me arremessava de volta. Daí se repetia, de novo e de novo, que nem roupa de desenho animado. Quem cansasse perdia. Essa era a regra. Show de bola que sou, ganhava a taça de vitamina e o medalhão de queijo, sem perder o gás. Contudo, assim como o depósito velho, o pelé e, até mesmo, o céu, a dona também estava mudada. Passou a espiar por horas através das janelas, escondida atrás dum escudo de cortinas, como se lá fora fosse perigoso. Ao ouvir o o-o-olá da campainha gaga, ela arrepiava mais do que os pintinhos dentro dos ovos na geladeira. Para onde ia, a dona carregava consigo a perna despregada do pelé, alerta que nem soldadinha de chumbo. Até a sua própria sombra prestava continência para ela. Num entardecer bom para empinar pipa, a dona se surpreendeu com uma estrela flutuando aos zigue-zagues pela sala. Era um daqueles enfeites luminosos que foram colados no teto do quarto novo. Vários deles decidiram tirar férias. A maioria pousou por lá mesmo, formando um carpete de vaga-lumes. Os mais travessos, entretanto, viajaram por toda a casa, como estrelas cadentes. Convidada pela ventania, a dona entrou no quarto novo a fim de calar a janela. Assim que a fechou, afundou em escuridão sem o brilho e o calor do céu, antes o seu farol e o seu cobertor. Proibia a entrada dele, porque, na última tempestade, choveu tanto, que os olhos dela incharam. Nas paredes nubladas, ao redor da dona, as molduras ainda estavam de castigo, penduradas sem recheio. Quadros vazios doem igual a promessas quebradas. A dona regou a macieira do rosto até faltarem lágrimas. Sentiu-se mais leve ao se esva- ziar delas. Lágrimas pesam. Então golpeou o nada até cansar, com aquele pedaço de cadeira, en- quanto gritava umas palavras feias. Não sei se ela estava treinando para jogar beisebol, usando a perna do pelé como taco, mas, com certeza, com esse linguajar, ela estava ensaiando o que dizer para o juiz. Ao contrário dos momentos bons, como os feriados e os aniversários, que têm um coração- zinho rabiscado no calendário avisando quando vão acontecer, os momentos ruins não têm uma caveirinha marcando a data. Eles chegam de surpresa, enquanto você dança uma ciranda com a vassoura ou escreve uma carta de amor na sopa de letrinhas... Foi numa hora qualquer, durante uma noite morna duma quarta-feira cinza, que a dona entrou no quarto novo correndo e se trancou lá comigo e com a cadeira. Eu não entendia bulhufas do que estava acontecendo. A minha única pista era a cara da dona: a mesma de quem viu um monstro. Concluí, de acordo com os meus pesadelos, que quem estava lá fora vestia branco fantasma e queria nos vacinar. Então escutei uma marcha embaralhada, vindo em direção à porta. Ela combinava com um batuque abafado que escapulia do coração da dona. Economizei ar, esperando o susto, que não se atrasou. A maçaneta começou a rodopiar em todas as direções. Batia-se à porta sem parar. Mas ninguém dava um pio. Será que alguém estava muíto apertado e achou que ali ficava o banheiro? A dona se tremia feito vara de pescar em piscina de tubarão. A perna solta do pelé, espremida entre as mãos dela, estava com a ponta toda borrada de vermelho. Lembro de já ter visto essa mesma tinta uma outra vez, quando a dona se machucou com uma faca malvada. Nunca me deixaram chegar perto dela nem da sua prima, a tesoura. Elas não latiam, mas mordiam. Teimoso, o desconhecido continuava a derramar trovoadas na porta do quarto novo, só que, dessa vez, com a força dum martelo narigudo. O ar dentro de mim ficou inquieto. Ao ser abraçada pela dona, senti os seus soluços dando petelecos na minha nuca. Mesmo assim, engasgada de medo, ela engoliu o choro e arriscou o seu mais valente grito de guerra. Entretanto, da sua boca saiu apenas um sopro que, de tão ralo, não intimidaria nem velinha de bolo de caneca. Como a jovem porta não tinha experiência em ser tambor, ela se desmanchava com a surra. Os seus parafusos de leite iam sendo, um a um, cuspidos para longe. O visitante misterioso entraria a qualquer instante. O que eu poderia fazer para salvar o mundo? Não aprendi a lutar capoeira e a única briga em que eu já havia me metido foi quando mostrei a língua para a minha gêmea que mora atrás do espelho. Além do mais, nem consegui fazer com que ela parasse de me imitar. Então, de repente, a dona começou a passar mal, igual a mim quando arrisquei bater o meu recorde de oitenta e oito voltas no carrossel. Com pipocas na cabeça, ela cambaleou para trás ao me descer do colo. Com formigas nos joelhos, derrubou um dos quadros vazios ao tentar se apoiar na parede. Com cadeados nos olhos, triscou com o calcanhar a cadeira atrás de si e se sentou de vez. O pelé, coitadinho, acordou sem o pé esquer- do. Não aguentando o peso da dona, derrubou-a no chão. Mas, eu juro de dedo mindinho, ela ficou bem! Sequer se machucou, porque eu, a bola fofa dela, servi de travesseiro. O triste de ela ter caído em cima de mim foi que, com o seu corpo me esmagando, perdi todo o ar. Porém o meu fôlego não se foi em vão, pois eu finalmente falei! Ou melhor, eu explodi, num longo e acentuado: SSSSSAAAAAAAAIIIIII!!! Depois desse grito, tudo ficou em silêncio. Não se escutava mais o tum-tum do meu coração, muito menos o toc-toc da porta. Quem ou o que estava atrás dela saiu de mansinho dali. Eu não fazia ideia de que a minha voz era tão assustadora. Fiquei murcha, mas, tudo bem, salvei a dona. Não vou reclamar de ela ter dormido em cima de mim. Sempre amava quando ela me apertava. Mas o piso do quarto novo estava tão frio, que nem neve de geladeira. Olhei para o lado. O vidro emoldurado no quadro, caído no chão, refletia a mim, a dona e o céu, que surgia pela janela. Era como se todos nós estivéssemos ali, numa fotografia. Olhei para cima. O teto estava fundo. Eu via estrelas. Elas também me viam. Enfim poderia me juntar a elas e dançar balé lá em cima, com a minha saia de cinco pontas. Ão menos, de lá do alto, eu conseguiria ver melhor o céu. Suspirei, uma última vez, o restinho daquele cheiro de domingo no quarto novo. Não me sobrou no peito nenhuma letra do abecê para dizer tchau. Então soprei um beijo, só um, duro e sem rima. Adeus. Espero que não morram de saudades, mas também que não vivam de lembranças. Peço apenas que aceitem as mudanças. Tudo muda: objetos de tijolo; bichos de madeira; pessoas de carne e osso... Eu também mudei. A bola de antes era ar preso, já a de agora é vento solto. Mesmo impossível de enxergar, fiquei fácil de encontrar, porque, onde me procurarem, estarei lá: assobiando na janela do quarto novo; sacudindo o pelé como se ele fosse cadeira de balanço; secando o suor colorido da dona; bagunçando a barba de algodão do céu... e morando dentro do peito de cada um. Torço para que a dona volte a acampar no telhado da casa, como fazia antigamente para se encontrar a sós com o céu. E tomara que a bola na barriga da dona a deixe feliz de novo, mas que, por favor, essa bola não seja igual a mim, que tinha ar... arma. Ou seria asma? Esqueci como se chama. Assim foi a despedida emocionante da bola de antes. Aliás, de bastantes antes: rolante; saltitante; brincante; pensante; cativante... mirabolante! Uma criança ofegante. A sua semelhante. Também importante. Não mais respirante. Mas, neste instante, aspirante... a anjo. O meu nome é Isadora, a isabola, ou só bola, como os meus pais sempre me chamaram. A filha querida de Madona, ou dona, a minha dona, e de Marcéu, ou céu, o meu céu. Apesar de eu não ter falado em vida, repetirei eternamente: -AMO VOCÊS!

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Um rangido, só um, duro e sem rima, saiu
por entre as rugas daquele cômodo. Tossir
um tchau foi o jeito que o depósito velho
encontrou para se despedir. Proibiram-me de o visitar enquanto ele se transformava em mais um quarto. O quarto novo. A sua reforma acabaria num estalar de dedos, foi o que me prometeram, mas um caracol preguiçoso construiria um segundo andar para o seu casco mais rápido. Enquanto isso, eu me perdia num labirinto de curiosidade, imaginando quem moraria lá.

Talvez um rei de terras distantes, onde se caminha dançando e se conversa cantando? Ou um astronauta que engatinhou pelo espaço e pisou descalço na lua? Ou, quem sabe, um inventor que criou a roda-gigante e a melancia sem sementes? Não sei. Mas, sem dúvidas, seria alguém dessa importância, por causa de todo o trabalho que deu: demolir uma cidade de caixotes empilhados; assoprar um deserto de poeira movediça; derrotar um exército de aranhas trapezistas... Uma novela sem fim.

Missão cumprida e nem a Vossa Gostosura

mais exigente teria com o que implicar. O quarto novo fazia jus ao seu nome. Uma caverna jurássica lavada com água da fonte da juventude. O teto foi pintado de preto vivo e temperado com quilos e mais quilos de adesivos estrelados, daqueles que acendem no escuro, formando a constelação de bola menor. Ficou do jeito que o céu gosta

Não trocaram o estilo de pão amanteigado das paredes, deixando aquela sensação familiar aos olhos. Nelas foram pendurados quadros de molduras brancas, arredondadas e indecisas. Lembravam nuvens brincando de mímica. Eu sequer conseguia descrever os seus formatos sem mudar de ideia logo em seguida. O mais esquisito, contudo, eram os quadros estarem sem nenhuma imagem dentro. Faziam o quarto novo parecer uma galeria fotográfica duma família invisível.

Centralizada na parede oposta à da porta, descobriu-se, durante a reforma, uma solitária janela, nunca antes usada! Abri-la pela primeira vez provocou um barulho tão enferrujado quanto o de uma estátua se espreguiçando. Foi música para os meus ouvidos, pois me fez sentir uma pirata abrindo uma arca do tesouro perdida. A janela, grata, deu à luz a luz. cobrindo tudo com um caloroso ouro verão.

Poderiam cachear os fios das luminárias, passar esmalte nos rodapés e até batom nas tomadas, que, mesmo com toda essa maquiagem nova, indo lá no centro do cômodo e respirando fundo, ainda daria para sentir o mesmo perfume. Um delicado e irresistível cheiro de domingo, dia no qual se entrava no depósito velho para pegar a bicicleta de ir tomar sorvete.

O piso de cimento queimado ainda tinha as cicatrizes que, antes, mapeavam o que preenchia o lugar. De norte a sul, o depósito velho vivia lo- tado, já o quarto novo morreria vazio, se não fosse pela cadeira quebrada e eu: a elegante como um elefante e insignificante que nem diamante... bola.

Sim. Bola. E falante! Mas também muda É que falar me fazia perder o ar. O que ninguém sabia é que eu era uma tagarela: respondia tudo o que eu queria e mais um bocado, mas apenas nos meus pensamentos. Melhor assim. Porque depois que eu soltasse a primeira palavra, mesmo que a da poesia menos doce ou a do dicionário mais salgado, só iria parar de falar quando eu terminasse murcha.

A propósito, a minha palavra predileta era gol. Mas aquele gol berrado com a boca bem escancarada, que nem bocejo de cobra. Era incrível ouvir uma palavra tão pequenina se esticando até o infinito. Acho que por isso eu torcia para todos os times. Adorava os dias de jogo, pois me levavam para passear. Menos quando chovia

Viviam dizendo: "a bola precisa dum banho" mas era só a natureza ligar a torneira que já me guardavam na casa. Eu me mordia de raiva. Inflava as bochechas, fazia bico e prendia o ar até mudar de cor. Confesso, às vezes eu era meio estourada. Não que eu estivesse cheia de razão, mas o que de mal poderia acontecer se eu ficasse só um pouquinho molhada?

Eu não era de ferro, tampouco de cristal!

Então, numa noite em que um raio visitou a terra e levou emprestado as luzes das casas, a lâmpada de ideias acendeu. Eu aproveitaria a escuridão para fugir, mas iria num pé e voltaria no outro, antes que circulasse no jornal a minha foto de desaparecida. Caso o plano desse cambalhotas, eu já tinha no bolso uma desculpa genial: saí só para testar se a água da chuva estava molhada.

Sem demora, pedi ajuda ao meu melhor amigo. Ele era uma cadeira alta e bamba. Em cima dele me senti montando uma girafa medrosa Alcancei a janela e, com um pulo, ganhei a liberdade! A chuva havia regado as bacias so quintal até crescerem oceanos. Boiei até criar escamas. No dia seguinte, bastou eu ameaçar um espirro, para convencer todos a me levarem pa passear, só que, dessa vez, no hospital.

Ninguém queria me perder. Tudo girava ao meu redor naquela casa. Eu era a irradiante, a brilhante, a iluminante, inclusive a redundante, bola do céu. Davam-me uma vida de princesa, cercando- me com os mais chiques mimos: colar de gudes; brincos de ioiô; buquê de cata-ventos; castelo de dominó... Eu só não usava uma coroa na cabeça, porque preferia um bambolê na cintura. Mas era do meu querido trono, aquela cadeira ao meu lado no quarto novo, que eu sentia mais ciúmes.

Pelé era o seu nome. Eu quem escolhi. Não por causa das pernas de pau, e sim porque ele tinha cara de pelé. Ponto-final. Era uma cadeira magra e de madeira crua. Por isso estava fora do cardápio dos cupins, esnobes. Porém esse era só o disfarce do pelé. Porque, por dentro, ele era um super-herói. Mesmo sem capa. Nascido da mesma árvore mágica com a qual se fabricam as varinhas de condão, ele tinha um superpoder: o de desaparecer!

Não é lero-lero de gibi. Se eu o colocasse num lugar e fechasse os meus olhos, eu já não o via mais. Foi por isso que lacei a perna dele com barbante. Preso pela coleira de crochê, o pelé não me escapava. Essa cadeira era o bicho de estimação perfeito para mim. Por ela ser careca, não soltava pelos para a minha alergia merendar.

Ensinei vários truques ao pelé. Porém era na arte de se fingir de morto que ninguém o vencia. Ele ficava lá, quieto, o dia inteiro, como se fosse um móvel da casa, pregando peça em todo mundo. Para a minha sorte, a cadeira tinha um ponto fraco: embaixo do braço, bem ali no sovaco de madeira. Bastava fazer um pingo de cócegas, para ela parar de teatrinho e cair na gargalhada

Eu também levava o pelé para passear. Só que, às vezes, ele empacava e arranhava o chão inteiro. Mas quando aprendi, assistindo à televisão, sobre cavalos e ferraduras, descobri o que faltava. Com meias xadrez bem grossas, a cadeira escorregava sem freios. Era como se o piso da casa estivesse ladrilhado com cascas de banana

Filho duma gangorra com um trampolim, o pelé era uma cadeira muito elétrica. Vivia andando pela casa, dum lado para o outro, com as suas quatro pernas. Até o dia em que sofreu um acidente e lhe sobraram apenas três. Acho que tropeçou brincando de amarelinha na escada. Ele nunca me contou como aconteceu. Não era cofre, mas sabia guardar segredo.

Notada a tristeza da cadeira, deram-lhe sapatos, acho que colhidos no jardim: uma chuteira do campeão em verde-limão, uma bota de chuva em roxo-uva e um tamanco da moda em rosa-cereja. Três. Um para cada perna. Calçaram a cadeira para que ela não caísse. Ao menos foi o que disseram. Contudo, se a conhecessem tão bem quanto eu, teriam lhe dado patins.

Faltando-lhe um pedaço, a cadeira perma- neceu lá, em pé, num cantinho do quarto novo. Ninguém mais sentava nela. Mas eu bolei um plano. Tempos atrás, encorajei o bule importado a usar a sua asa, assim ele poderia voar de volta à Inglaterra. O desastrado errou a janela e deu um beijo de cinema na parede, partindo o bico. Contei para o céu e logo depois o bule estava curado, piando em inglês na cozinha. Quem sabe, se eu pedisse com carinho, ele ajudasse a cadeira dessa
vez. Só que o céu estava tão distante...

Na casa também morava a dona. Assim como todo adulto, ela colecionava remédios. Talvez, misturando a sua pomada para ferida, que ardia igual a purê de pimenta, com o meu chiclete de hortelã, que refrescava que nem suco de gelo, a perna do pelé grudasse de volta no lugar.

A dona falava a língua das cores: era uma pintora. Ou melhor, era uma pintura viva. Tinha franjas de arco-íris, sardas de confete e pegadas de carimbo. Uma artista da cabeça aos pés. A gara- gem da casa, onde trabalhava, era a sua oficina de sonhos: pintava aquário fardado de bombeiro; perucas secando em varal; ninho dentro de garrafa...

Colocadas lado a lado, as telas pareciam cenas picotadas dum mesmo filme. Eu ficava enfeitiçada, parada feito boneca em vitrine, ten- tando adivinhar esse quebra-cabeça. Porém era pegando no sono que eu ganhava o bilhete para o cinema e chegava a um final feliz. Não acordava nem quando a dona pincelava em mim, com os seus dedos de pelúcia, uma tatuagem em aquarela. Admito, às vezes eu só fingia dormir, torcendo para ser premiada com um bigode de gato ou uns óculos de flor.

Ela pintava o sete comigo. Era uma pena, aliás, era uma peteca inteira que esse tempo tenha chegado ao fim. Ultimamente a dona estava sempre cansada, com o andar arrastado de quem embaraçou um cadarço no outro, quase parando, como um robô com pilhas velhas. Ela pegou uma doença de nome esquisito, gravidez, eu acho. Isso me deixava um chocalho de medo. Porque, pelo tamanho da barriga dela, estava óbvio que aquilo era indigestão por ter devorado uma bola inocente como eu.

Brincadeirinha! A minha dona comia apenas folha e era bondosa de carteirinha. Nós nos divertíamos tanto, que o relógio, invejoso, girava o seu ponteiro mais rápido, igual a helicóptero, para fazer o tempo voar. Inventamos até um esporte só nosso, chamado bolalta. Jogava-se assim: a dona me abraçava e me lançava para o céu, que, sem demora, dava-me um cafuné e me arremessava de volta. Daí se repetia, de novo e de novo, que nem roupa de desenho animado. Quem cansasse perdia. Essa era a regra. Show de bola que sou, ganhava a taça de vitamina e o medalhão de queijo, sem perder o gás.

Contudo, assim como o depósito velho, o pelé e, até mesmo, o céu, a dona também estava mudada. Passou a espiar por horas através das janelas, escondida atrás dum escudo de cortinas, como se lá fora fosse perigoso. Ao ouvir o o-o-olá da campainha gaga, ela arrepiava mais do que os pintinhos dentro dos ovos na geladeira. Para onde ia, a dona carregava consigo a perna despregada do pelé, alerta que nem soldadinha de chumbo. Até

a sua própria sombra prestava continência para ela.

Num entardecer bom para empinar pipa, a dona se surpreendeu com uma estrela flutuando aos zigue-zagues pela sala. Era um daqueles enfeites luminosos que foram colados no teto do quarto novo. Vários deles decidiram tirar férias. A maioria pousou por lá mesmo, formando um carpete de vaga-lumes. Os mais travessos, entretanto, viajaram por toda a casa, como estrelas cadentes.

Convidada pela ventania, a dona entrou no quarto novo a fim de calar a janela. Assim que a fechou, afundou em escuridão sem o brilho e o calor do céu, antes o seu farol e o seu cobertor. Proibia a entrada dele, porque, na última tempestade, choveu tanto, que os olhos dela incharam. Nas paredes nubladas, ao redor da dona, as molduras ainda estavam de castigo, penduradas sem recheio. Quadros vazios doem igual a promessas quebradas.

A dona regou a macieira do rosto até
faltarem lágrimas. Sentiu-se mais leve ao se esva- ziar delas. Lágrimas pesam. Então golpeou o nada até cansar, com aquele pedaço de cadeira, en- quanto gritava umas palavras feias. Não sei se ela estava treinando para jogar beisebol, usando a perna do pelé como taco, mas, com certeza, com esse linguajar, ela estava ensaiando o que dizer
para o juiz.

Ao contrário dos momentos bons, como os feriados e os aniversários, que têm um coração- zinho rabiscado no calendário avisando quando vão acontecer, os momentos ruins não têm uma caveirinha marcando a data. Eles chegam de surpresa, enquanto você dança uma ciranda com a vassoura ou escreve uma carta de amor na sopa de letrinhas... Foi numa hora qualquer, durante uma noite morna duma quarta-feira cinza, que a dona entrou no quarto novo correndo e se trancou lá comigo e com a cadeira.

Eu não entendia bulhufas do que estava acontecendo. A minha única pista era a cara da dona: a mesma de quem viu um monstro. Concluí, de acordo com os meus pesadelos, que quem estava lá fora vestia branco fantasma e queria nos vacinar. Então escutei uma marcha embaralhada, vindo em direção à porta. Ela combinava com um batuque abafado que escapulia do coração da dona.

Economizei ar, esperando o susto, que não se atrasou. A maçaneta começou a rodopiar em todas as direções. Batia-se à porta sem parar. Mas ninguém dava um pio. Será que alguém estava muíto apertado e achou que ali ficava o banheiro? 

A dona se tremia feito vara de pescar em piscina de tubarão. A perna solta do pelé, espremida entre as mãos dela, estava com a ponta toda borrada de vermelho. Lembro de já ter visto essa mesma tinta uma outra vez, quando a dona se machucou com uma faca malvada. Nunca me deixaram chegar perto dela nem da sua prima, a tesoura. Elas não latiam, mas mordiam. Teimoso, o desconhecido continuava a derramar trovoadas na porta do quarto novo, só que, dessa vez, com a força dum martelo narigudo.

O ar dentro de mim ficou inquieto. Ao ser abraçada pela dona, senti os seus soluços dando petelecos na minha nuca. Mesmo assim, engasgada de medo, ela engoliu o choro e arriscou o seu mais valente grito de guerra. Entretanto, da sua boca saiu apenas um sopro que, de tão ralo, não intimidaria nem velinha de bolo de caneca. Como a jovem porta não tinha experiência em ser tambor, ela se desmanchava com a surra. Os seus parafusos de leite iam sendo, um a um, cuspidos para longe. O visitante misterioso entraria a qualquer instante.

O que eu poderia fazer para salvar o mundo? Não aprendi a lutar capoeira e a única briga em que eu já havia me metido foi quando mostrei a língua para a minha gêmea que mora atrás do espelho. Além do mais, nem consegui fazer com que ela parasse de me imitar.

Então, de repente, a dona começou a passar mal, igual a mim quando arrisquei bater o meu recorde de oitenta e oito voltas no carrossel. Com pipocas na cabeça, ela cambaleou para trás ao me descer do colo. Com formigas nos joelhos, derrubou um dos quadros vazios ao tentar se apoiar na parede. Com cadeados nos olhos, triscou com o calcanhar a cadeira atrás de si e se sentou de vez.

O pelé, coitadinho, acordou sem o pé esquer- do. Não aguentando o peso da dona, derrubou-a no chão. Mas, eu juro de dedo mindinho, ela ficou bem! Sequer se machucou, porque eu, a bola fofa dela, servi de travesseiro. O triste de ela ter caído em cima de mim foi que, com o seu corpo me esmagando, perdi todo o ar. Porém o meu fôlego não se foi em vão, pois eu finalmente falei! Ou melhor, eu explodi, num longo e acentuado:

SSSSSAAAAAAAAIIIIII!!!

Depois desse grito, tudo ficou em silêncio. Não se escutava mais o tum-tum do meu coração, muito menos o toc-toc da porta. Quem ou o que estava atrás dela saiu de mansinho dali. Eu não fazia ideia de que a minha voz era tão assustadora. Fiquei murcha, mas, tudo bem, salvei a dona. Não vou reclamar de ela ter dormido em cima de mim. Sempre amava quando ela me apertava. Mas o piso do quarto novo estava tão frio, que nem neve de geladeira.

Olhei para o lado. O vidro emoldurado no quadro, caído no chão, refletia a mim, a dona e o céu, que surgia pela janela. Era como se todos nós estivéssemos ali, numa fotografia. Olhei para cima. O teto estava fundo. Eu via estrelas. Elas também me viam. Enfim poderia me juntar a elas e dançar balé lá em cima, com a minha saia de cinco pontas. Ão menos, de lá do alto, eu conseguiria ver melhor o céu.

Suspirei, uma última vez, o restinho daquele cheiro de domingo no quarto novo. Não me sobrou no peito nenhuma letra do abecê para dizer tchau. Então soprei um beijo, só um, duro e sem rima.

Adeus. Espero que não morram de saudades, mas também que não vivam de lembranças. Peço apenas que aceitem as mudanças. Tudo muda: objetos de tijolo; bichos de madeira; pessoas de carne e osso... Eu também mudei. A bola de antes era ar preso, já a de agora é vento solto. Mesmo impossível de enxergar, fiquei fácil de encontrar, porque, onde me procurarem, estarei lá: assobiando na janela do quarto novo; sacudindo o pelé como se ele fosse cadeira de balanço; secando o suor colorido da dona; bagunçando a barba de algodão do céu... e morando dentro do peito de cada um.

Torço para que a dona volte a acampar no telhado da casa, como fazia antigamente para se encontrar a sós com o céu. E tomara que a bola na barriga da dona a deixe feliz de novo, mas que, por favor, essa bola não seja igual a mim, que tinha ar... arma. Ou seria asma? Esqueci como se chama.

Assim foi a despedida emocionante da bola de antes. Aliás, de bastantes antes: rolante; saltitante; brincante; pensante; cativante... mirabolante! Uma criança ofegante. A sua semelhante. Também importante. Não mais respirante. Mas, neste instante, aspirante... a anjo.

O meu nome é Isadora, a isabola, ou só bola, como os meus pais sempre me chamaram. A filha querida de Madona, ou dona, a minha dona, e de Marcéu, ou céu, o meu céu. Apesar de eu não ter falado em vida, repetirei eternamente:

-AMO VOCÊS!
—— 完 ——
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Um rangido, só um, duro e sem rima, saiu por entre as rugas daquele cômodo. Tossir um tchau foi o jeito que o depósito velho encontrou para se despedir. Proibiram-me de o visitar enquanto ele se transformava em mais um quarto. O quarto novo. A sua reforma acabaria num estalar de dedos, foi o que me prometeram, mas um caracol preguiçoso construiria um segundo andar para o seu casco mais rápido. Enquanto isso, eu me perdia num labirinto de curiosidade, imaginando quem moraria lá. Talvez um rei de terras distantes, onde se caminha dançando e se conversa cantando? Ou um astronauta que engatinhou pelo espaço e pisou descalço na lua? Ou, quem sabe, um inventor que criou a roda-gigante e a melancia sem sementes? Não sei. Mas, sem dúvidas, seria alguém dessa importância, por causa de todo o trabalho que deu: demolir uma cidade de caixotes empilhados; assoprar um deserto de poeira movediça; derrotar um exército de aranhas trapezistas... Uma novela sem fim. Missão cumprida e nem a Vossa Gostosura mais exigente teria com o que implicar. O quarto novo fazia jus ao seu nome. Uma caverna jurássica lavada com água da fonte da juventude. O teto foi pintado de preto vivo e temperado com quilos e mais quilos de adesivos estrelados, daqueles que acendem no escuro, formando a constelação de bola menor. Ficou do jeito que o céu gosta Não trocaram o estilo de pão amanteigado das paredes, deixando aquela sensação familiar aos olhos. Nelas foram pendurados quadros de molduras brancas, arredondadas e indecisas. Lembravam nuvens brincando de mímica. Eu sequer conseguia descrever os seus formatos sem mudar de ideia logo em seguida. O mais esquisito, contudo, eram os quadros estarem sem nenhuma imagem dentro. Faziam o quarto novo parecer uma galeria fotográfica duma família invisível. Centralizada na parede oposta à da porta, descobriu-se, durante a reforma, uma solitária janela, nunca antes usada! Abri-la pela primeira vez provocou um barulho tão enferrujado quanto o de uma estátua se espreguiçando. Foi música para os meus ouvidos, pois me fez sentir uma pirata abrindo uma arca do tesouro perdida. A janela, grata, deu à luz a luz. cobrindo tudo com um caloroso ouro verão. Poderiam cachear os fios das luminárias, passar esmalte nos rodapés e até batom nas tomadas, que, mesmo com toda essa maquiagem nova, indo lá no centro do cômodo e respirando fundo, ainda daria para sentir o mesmo perfume. Um delicado e irresistível cheiro de domingo, dia no qual se entrava no depósito velho para pegar a bicicleta de ir tomar sorvete. O piso de cimento queimado ainda tinha as cicatrizes que, antes, mapeavam o que preenchia o lugar. De norte a sul, o depósito velho vivia lo- tado, já o quarto novo morreria vazio, se não fosse pela cadeira quebrada e eu: a elegante como um elefante e insignificante que nem diamante... bola. Sim. Bola. E falante! Mas também muda É que falar me fazia perder o ar. O que ninguém sabia é que eu era uma tagarela: respondia tudo o que eu queria e mais um bocado, mas apenas nos meus pensamentos. Melhor assim. Porque depois que eu soltasse a primeira palavra, mesmo que a da poesia menos doce ou a do dicionário mais salgado, só iria parar de falar quando eu terminasse murcha. A propósito, a minha palavra predileta era gol. Mas aquele gol berrado com a boca bem escancarada, que nem bocejo de cobra. Era incrível ouvir uma palavra tão pequenina se esticando até o infinito. Acho que por isso eu torcia para todos os times. Adorava os dias de jogo, pois me levavam para passear. Menos quando chovia Viviam dizendo: "a bola precisa dum banho" mas era só a natureza ligar a torneira que já me guardavam na casa. Eu me mordia de raiva. Inflava as bochechas, fazia bico e prendia o ar até mudar de cor. Confesso, às vezes eu era meio estourada. Não que eu estivesse cheia de razão, mas o que de mal poderia acontecer se eu ficasse só um pouquinho molhada? Eu não era de ferro, tampouco de cristal! Então, numa noite em que um raio visitou a terra e levou emprestado as luzes das casas, a lâmpada de ideias acendeu. Eu aproveitaria a escuridão para fugir, mas iria num pé e voltaria no outro, antes que circulasse no jornal a minha foto de desaparecida. Caso o plano desse cambalhotas, eu já tinha no bolso uma desculpa genial: saí só para testar se a água da chuva estava molhada. Sem demora, pedi ajuda ao meu melhor amigo. Ele era uma cadeira alta e bamba. Em cima dele me senti montando uma girafa medrosa Alcancei a janela e, com um pulo, ganhei a liberdade! A chuva havia regado as bacias so quintal até crescerem oceanos. Boiei até criar escamas. No dia seguinte, bastou eu ameaçar um espirro, para convencer todos a me levarem pa passear, só que, dessa vez, no hospital. Ninguém queria me perder. Tudo girava ao meu redor naquela casa. Eu era a irradiante, a brilhante, a iluminante, inclusive a redundante, bola do céu. Davam-me uma vida de princesa, cercando- me com os mais chiques mimos: colar de gudes; brincos de ioiô; buquê de cata-ventos; castelo de dominó... Eu só não usava uma coroa na cabeça, porque preferia um bambolê na cintura. Mas era do meu querido trono, aquela cadeira ao meu lado no quarto novo, que eu sentia mais ciúmes. Pelé era o seu nome. Eu quem escolhi. Não por causa das pernas de pau, e sim porque ele tinha cara de pelé. Ponto-final. Era uma cadeira magra e de madeira crua. Por isso estava fora do cardápio dos cupins, esnobes. Porém esse era só o disfarce do pelé. Porque, por dentro, ele era um super-herói. Mesmo sem capa. Nascido da mesma árvore mágica com a qual se fabricam as varinhas de condão, ele tinha um superpoder: o de desaparecer! Não é lero-lero de gibi. Se eu o colocasse num lugar e fechasse os meus olhos, eu já não o via mais. Foi por isso que lacei a perna dele com barbante. Preso pela coleira de crochê, o pelé não me escapava. Essa cadeira era o bicho de estimação perfeito para mim. Por ela ser careca, não soltava pelos para a minha alergia merendar. Ensinei vários truques ao pelé. Porém era na arte de se fingir de morto que ninguém o vencia. Ele ficava lá, quieto, o dia inteiro, como se fosse um móvel da casa, pregando peça em todo mundo. Para a minha sorte, a cadeira tinha um ponto fraco: embaixo do braço, bem ali no sovaco de madeira. Bastava fazer um pingo de cócegas, para ela parar de teatrinho e cair na gargalhada Eu também levava o pelé para passear. Só que, às vezes, ele empacava e arranhava o chão inteiro. Mas quando aprendi, assistindo à televisão, sobre cavalos e ferraduras, descobri o que faltava. Com meias xadrez bem grossas, a cadeira escorregava sem freios. Era como se o piso da casa estivesse ladrilhado com cascas de banana Filho duma gangorra com um trampolim, o pelé era uma cadeira muito elétrica. Vivia andando pela casa, dum lado para o outro, com as suas quatro pernas. Até o dia em que sofreu um acidente e lhe sobraram apenas três. Acho que tropeçou brincando de amarelinha na escada. Ele nunca me contou como aconteceu. Não era cofre, mas sabia guardar segredo. Notada a tristeza da cadeira, deram-lhe sapatos, acho que colhidos no jardim: uma chuteira do campeão em verde-limão, uma bota de chuva em roxo-uva e um tamanco da moda em rosa-cereja. Três. Um para cada perna. Calçaram a cadeira para que ela não caísse. Ao menos foi o que disseram. Contudo, se a conhecessem tão bem quanto eu, teriam lhe dado patins. Faltando-lhe um pedaço, a cadeira perma- neceu lá, em pé, num cantinho do quarto novo. Ninguém mais sentava nela. Mas eu bolei um plano. Tempos atrás, encorajei o bule importado a usar a sua asa, assim ele poderia voar de volta à Inglaterra. O desastrado errou a janela e deu um beijo de cinema na parede, partindo o bico. Contei para o céu e logo depois o bule estava curado, piando em inglês na cozinha. Quem sabe, se eu pedisse com carinho, ele ajudasse a cadeira dessa vez. Só que o céu estava tão distante... Na casa também morava a dona. Assim como todo adulto, ela colecionava remédios. Talvez, misturando a sua pomada para ferida, que ardia igual a purê de pimenta, com o meu chiclete de hortelã, que refrescava que nem suco de gelo, a perna do pelé grudasse de volta no lugar. A dona falava a língua das cores: era uma pintora. Ou melhor, era uma pintura viva. Tinha franjas de arco-íris, sardas de confete e pegadas de carimbo. Uma artista da cabeça aos pés. A gara- gem da casa, onde trabalhava, era a sua oficina de sonhos: pintava aquário fardado de bombeiro; perucas secando em varal; ninho dentro de garrafa... Colocadas lado a lado, as telas pareciam cenas picotadas dum mesmo filme. Eu ficava enfeitiçada, parada feito boneca em vitrine, ten- tando adivinhar esse quebra-cabeça. Porém era pegando no sono que eu ganhava o bilhete para o cinema e chegava a um final feliz. Não acordava nem quando a dona pincelava em mim, com os seus dedos de pelúcia, uma tatuagem em aquarela. Admito, às vezes eu só fingia dormir, torcendo para ser premiada com um bigode de gato ou uns óculos de flor. Ela pintava o sete comigo. Era uma pena, aliás, era uma peteca inteira que esse tempo tenha chegado ao fim. Ultimamente a dona estava sempre cansada, com o andar arrastado de quem embaraçou um cadarço no outro, quase parando, como um robô com pilhas velhas. Ela pegou uma doença de nome esquisito, gravidez, eu acho. Isso me deixava um chocalho de medo. Porque, pelo tamanho da barriga dela, estava óbvio que aquilo era indigestão por ter devorado uma bola inocente como eu. Brincadeirinha! A minha dona comia apenas folha e era bondosa de carteirinha. Nós nos divertíamos tanto, que o relógio, invejoso, girava o seu ponteiro mais rápido, igual a helicóptero, para fazer o tempo voar. Inventamos até um esporte só nosso, chamado bolalta. Jogava-se assim: a dona me abraçava e me lançava para o céu, que, sem demora, dava-me um cafuné e me arremessava de volta. Daí se repetia, de novo e de novo, que nem roupa de desenho animado. Quem cansasse perdia. Essa era a regra. Show de bola que sou, ganhava a taça de vitamina e o medalhão de queijo, sem perder o gás. Contudo, assim como o depósito velho, o pelé e, até mesmo, o céu, a dona também estava mudada. Passou a espiar por horas através das janelas, escondida atrás dum escudo de cortinas, como se lá fora fosse perigoso. Ao ouvir o o-o-olá da campainha gaga, ela arrepiava mais do que os pintinhos dentro dos ovos na geladeira. Para onde ia, a dona carregava consigo a perna despregada do pelé, alerta que nem soldadinha de chumbo. Até a sua própria sombra prestava continência para ela. Num entardecer bom para empinar pipa, a dona se surpreendeu com uma estrela flutuando aos zigue-zagues pela sala. Era um daqueles enfeites luminosos que foram colados no teto do quarto novo. Vários deles decidiram tirar férias. A maioria pousou por lá mesmo, formando um carpete de vaga-lumes. Os mais travessos, entretanto, viajaram por toda a casa, como estrelas cadentes. Convidada pela ventania, a dona entrou no quarto novo a fim de calar a janela. Assim que a fechou, afundou em escuridão sem o brilho e o calor do céu, antes o seu farol e o seu cobertor. Proibia a entrada dele, porque, na última tempestade, choveu tanto, que os olhos dela incharam. Nas paredes nubladas, ao redor da dona, as molduras ainda estavam de castigo, penduradas sem recheio. Quadros vazios doem igual a promessas quebradas. A dona regou a macieira do rosto até faltarem lágrimas. Sentiu-se mais leve ao se esva- ziar delas. Lágrimas pesam. Então golpeou o nada até cansar, com aquele pedaço de cadeira, en- quanto gritava umas palavras feias. Não sei se ela estava treinando para jogar beisebol, usando a perna do pelé como taco, mas, com certeza, com esse linguajar, ela estava ensaiando o que dizer para o juiz. Ao contrário dos momentos bons, como os feriados e os aniversários, que têm um coração- zinho rabiscado no calendário avisando quando vão acontecer, os momentos ruins não têm uma caveirinha marcando a data. Eles chegam de surpresa, enquanto você dança uma ciranda com a vassoura ou escreve uma carta de amor na sopa de letrinhas... Foi numa hora qualquer, durante uma noite morna duma quarta-feira cinza, que a dona entrou no quarto novo correndo e se trancou lá comigo e com a cadeira. Eu não entendia bulhufas do que estava acontecendo. A minha única pista era a cara da dona: a mesma de quem viu um monstro. Concluí, de acordo com os meus pesadelos, que quem estava lá fora vestia branco fantasma e queria nos vacinar. Então escutei uma marcha embaralhada, vindo em direção à porta. Ela combinava com um batuque abafado que escapulia do coração da dona. Economizei ar, esperando o susto, que não se atrasou. A maçaneta começou a rodopiar em todas as direções. Batia-se à porta sem parar. Mas ninguém dava um pio. Será que alguém estava muíto apertado e achou que ali ficava o banheiro? A dona se tremia feito vara de pescar em piscina de tubarão. A perna solta do pelé, espremida entre as mãos dela, estava com a ponta toda borrada de vermelho. Lembro de já ter visto essa mesma tinta uma outra vez, quando a dona se machucou com uma faca malvada. Nunca me deixaram chegar perto dela nem da sua prima, a tesoura. Elas não latiam, mas mordiam. Teimoso, o desconhecido continuava a derramar trovoadas na porta do quarto novo, só que, dessa vez, com a força dum martelo narigudo. O ar dentro de mim ficou inquieto. Ao ser abraçada pela dona, senti os seus soluços dando petelecos na minha nuca. Mesmo assim, engasgada de medo, ela engoliu o choro e arriscou o seu mais valente grito de guerra. Entretanto, da sua boca saiu apenas um sopro que, de tão ralo, não intimidaria nem velinha de bolo de caneca. Como a jovem porta não tinha experiência em ser tambor, ela se desmanchava com a surra. Os seus parafusos de leite iam sendo, um a um, cuspidos para longe. O visitante misterioso entraria a qualquer instante. O que eu poderia fazer para salvar o mundo? Não aprendi a lutar capoeira e a única briga em que eu já havia me metido foi quando mostrei a língua para a minha gêmea que mora atrás do espelho. Além do mais, nem consegui fazer com que ela parasse de me imitar. Então, de repente, a dona começou a passar mal, igual a mim quando arrisquei bater o meu recorde de oitenta e oito voltas no carrossel. Com pipocas na cabeça, ela cambaleou para trás ao me descer do colo. Com formigas nos joelhos, derrubou um dos quadros vazios ao tentar se apoiar na parede. Com cadeados nos olhos, triscou com o calcanhar a cadeira atrás de si e se sentou de vez. O pelé, coitadinho, acordou sem o pé esquer- do. Não aguentando o peso da dona, derrubou-a no chão. Mas, eu juro de dedo mindinho, ela ficou bem! Sequer se machucou, porque eu, a bola fofa dela, servi de travesseiro. O triste de ela ter caído em cima de mim foi que, com o seu corpo me esmagando, perdi todo o ar. Porém o meu fôlego não se foi em vão, pois eu finalmente falei! Ou melhor, eu explodi, num longo e acentuado: SSSSSAAAAAAAAIIIIII!!! Depois desse grito, tudo ficou em silêncio. Não se escutava mais o tum-tum do meu coração, muito menos o toc-toc da porta. Quem ou o que estava atrás dela saiu de mansinho dali. Eu não fazia ideia de que a minha voz era tão assustadora. Fiquei murcha, mas, tudo bem, salvei a dona. Não vou reclamar de ela ter dormido em cima de mim. Sempre amava quando ela me apertava. Mas o piso do quarto novo estava tão frio, que nem neve de geladeira. Olhei para o lado. O vidro emoldurado no quadro, caído no chão, refletia a mim, a dona e o céu, que surgia pela janela. Era como se todos nós estivéssemos ali, numa fotografia. Olhei para cima. O teto estava fundo. Eu via estrelas. Elas também me viam. Enfim poderia me juntar a elas e dançar balé lá em cima, com a minha saia de cinco pontas. Ão menos, de lá do alto, eu conseguiria ver melhor o céu. Suspirei, uma última vez, o restinho daquele cheiro de domingo no quarto novo. Não me sobrou no peito nenhuma letra do abecê para dizer tchau. Então soprei um beijo, só um, duro e sem rima. Adeus. Espero que não morram de saudades, mas também que não vivam de lembranças. Peço apenas que aceitem as mudanças. Tudo muda: objetos de tijolo; bichos de madeira; pessoas de carne e osso... Eu também mudei. A bola de antes era ar preso, já a de agora é vento solto. Mesmo impossível de enxergar, fiquei fácil de encontrar, porque, onde me procurarem, estarei lá: assobiando na janela do quarto novo; sacudindo o pelé como se ele fosse cadeira de balanço; secando o suor colorido da dona; bagunçando a barba de algodão do céu... e morando dentro do peito de cada um. Torço para que a dona volte a acampar no telhado da casa, como fazia antigamente para se encontrar a sós com o céu. E tomara que a bola na barriga da dona a deixe feliz de novo, mas que, por favor, essa bola não seja igual a mim, que tinha ar... arma. Ou seria asma? Esqueci como se chama. Assim foi a despedida emocionante da bola de antes. Aliás, de bastantes antes: rolante; saltitante; brincante; pensante; cativante... mirabolante! Uma criança ofegante. A sua semelhante. Também importante. Não mais respirante. Mas, neste instante, aspirante... a anjo. O meu nome é Isadora, a isabola, ou só bola, como os meus pais sempre me chamaram. A filha querida de Madona, ou dona, a minha dona, e de Marcéu, ou céu, o meu céu. Apesar de eu não ter falado em vida, repetirei eternamente: -AMO VOCÊS!

about 2 months ago

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